quarta-feira, janeiro 26

O Estatuto da Criança e do Adolescente chega à aldeia indígena
 

A história ocorre na Aldeia Amambai, uma das maiores concentrações de indígenas do País e a maior aldeia do Estado de Mato Grosso do Sul.

Chega à Promotoria de Justiça a informação da existência de crianças indígenas desnutridas e, em especial, o caso da pequena Yara* (nome alterado), que estaria em avançado estado de desnutrição e prestes a morrer.

Apurou-se que o pai da criança estava impedindo agentes da saúde de prestarem o atendimento devido.

Então, uma força tarefa foi formada com Ministério Público, Conselho Tutelar, Polícia Militar, Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) para a busca da criança, no interior da aldeia.

Chegando lá, houve indagação por parte de representantes locais, sobre a entrada em área indígena, alegando que não haveria possibilidade de tomada de ações.

Após alguns minutos, surgiu o líder da comunidade, o qual, após extensas conversas com o promotor de justiça e uma médica da FUNASA, sempre com vistas ao tratamento da criança, entendeu que era caso excepcional de "lei de crianças", como chegou a dizer, e assim possibilitou a entrada no local.
Interessante foi apresentar ao capitão da aldeia o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) daquela forma, dizendo que era uma lei que preservava a vida das crianças, independentemente de serem "brancas" ou "indígenas".

Bom, deu certo.


Assim, foi iniciada a busca pela criança.


Após diversas horas pelas longas estradas e picadas da aldeia, a pequena Yara foi encontrada em visível estado de desnutrição.
O pai desaparecera ao ver aquele amontoado de pessoas e polícia juntos.


Resgatada, a criança foi levada em uma ambulância para tratamento médico, em um centro de atendimento, a Dourados (MS), cidade a 250 quilômetros.



Aproveitando aquela estada no interior da aldeia, vários outros casos de desnutrição foram diagnosticados.


Além da escassez de comida e água potável, o maior fator de desnutrição era a falta de informação e orientação à comunidade indígena.


A água e a comida consumidas ficavam expostas em potes, a céu aberto, junto a animais e sujeira.



Em razão disso, as crianças viviam em constantes diarréias e, por mais incrível que possa parecer, os pais aplicavam um princípio indígena de que, "se sai água do corpo, para parar, é preciso parar de dar água ao corpo".

 Ainda, havia um regramento certamente secular de que, se um filho está desnutrido, é fruto de "bruxaria" e, assim, "não podiam fazer nada senão tentar quebrar a bruxaria com rezas e benzimentos".


Caso não obtivessem sucesso, havendo outros irmãos, não adiantava dar comida ao filho "amaldiçoado", seria desperdício, sendo melhor aproveitar a comida para dar aos outros, deixando o enfermo definhar até a morte.



Outra questão enfrentada pelas aldeias indígenas era o alcoolismo.



Cestas de auxílio entregues aos pais pelo Estado, para cuidar da alimentação dos filhos, muitas vezes eram objetos de troca em mercearias da cidade (ou, clandestinamente, por índios ligados a determinadas facções internas), por bebidas alcoólicas, em geral pinga e cachaça.



Muitos índios, desse modo, viviam sem comida e embriagados, deixando os filhos à mingua e à própria sorte.



Em muitos casos, algumas mulheres indígenas chegavam até a tentar impedir seus maridos de realizar a troca da comida de seus filhos; contudo, eram violentamente espancadas e dificilmente tinham a quem recorrer, até mesmo pela posição de inferioridade ensejada pela cultura vivida.
Constatadas tantas questões de fundo a envolver aquele episódio da pequena Yara, passou-se a um trabalho de reflexão dos órgãos e entidades locais, com reuniões e ajuste de medidas.

Houve intensificação de orientações pela FUNAI e FUNASA, em questões sanitárias e nutricionais.


A Pastoral da Criança conseguiu empreender informações às mães indígenas, em assuntos ligados à conservação da água, preparo de comida e capacitação de membros da própria comunidade indígena para passarem as orientações aos demais, em língua guarani.
O Conselho Tutelar passou freqüentemente a atender casos no interior da aldeia, com apoio do chefe da comunidade, fazendo encaminhamento aos diversos setores da rede de atendimento, inclusive remetendo ao Ministério Público eventuais casos passíveis de análise jurídica.


Assim, apesar de se estar longe de alcançar a solução dos problemas constatados, pode-se dizer que o ECA, com atraso de cerca de quinze anos (hoje vinte), ingressou mais alguns passos na comunidade indígena local, a qual passou a conhecê-lo não por meio de suas letras e artigo;, mas, sim, por intermédio de algumas das ações e medidas nele previstas.



Ah, quanto a pequena Yara, hoje se encontra saudável e, conforme relatou a mãe, "não pára de comer”.



(Esse texto foi elaborado quando atuava em Amambai/MS, e foi publicado em “Causos do ECA”, no site do programa ‘Pro menino”).

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